Bate-Papo com o Luthier Edmar Luighi


Edmar Luighi é luthier, músico, professor da conceituada escola EM&T (Escola de Música e Tecnologia), palestrante, técnico em eletrônica e áudio. Foi colunista das revistas Cover Guitarra e Cover Baixo, além de ser autor dos livros “Guia Ilustrado da Guitarra Volume I – Dicas e Cuidados Essenciais”, “Guia Ilustrado da Guitarra Volume II – Tudo Sobre Captadores” e “Guia Ilustrado do Contrabaixo”. Desde o início dos anos 90 dedica-se à fabricação, customização e manutenção de guitarras, contrabaixos e violões, estando à frente da empresa que leva seu nome – a Edmar Luighi Luthiers, sediada na cidade de São Paulo/SP.

Ao longo da entrevista, ele nos contou um pouco sobre seus primeiros passos na luteria, dificuldades enfrentadas ao longo da carreira, realizações profissionais, dicas para quem está começando na profissão, dentre outros assuntos.

Por: Álvaro Silva (ahfsilva@gmail.com).

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Luthier Edmar Luighi

Quando você iniciou sua trajetória na luteria? Quais motivos te levaram para esse caminho?

Edmar Luighi: Iniciei por volta de 1986 a fazer trabalhos em minha guitarra. Nesses anos a luteria não era algo popular. Os luthiers mais antigos ou estavam se aposentando ou estavam morrendo. Nessa época tínhamos o Seizi Tagima no bairro da lapa, que talvez fosse o técnico de maior experiência no momento, o luthier Tiguez - que ainda não estava com muito tempo de luteria, e alguns outros. Ajustar, regular, ou customizar instrumentos não era uma tarefa fácil, pois além de caro e escasso de profissionais, não havia muita tecnologia e o comércio de importação ainda não estava aberto legalmente para esse segmento, o que dificultava muito o acesso a acessórios, ferramentas e instrumentos.

Na época eu tocava guitarra em algumas bandas e já tinha algum conhecimento em eletrônica. Meu pai era marceneiro, e desta forma, eu já estava bastante familiarizado com madeiras e ferramentas de marcenaria. Devido às dificuldades que citei acima, logo comecei a experimentar fazendo pequenos ajustes. Tive algumas orientações do Luthier Seizi, que foi muito bacana comigo, e o Luthier Tiguez que avaliava meus trabalhos de regulagens, troca ou retifica de trastes, quando eu levava em sua oficina. Inclusive, a primeira lima de ajuste de trastes importada que eu tive foi o Tiguez que me deu. Era velha, sem muito corte, mas me ajudou bastante no trabalho. Ambos meus amigos até hoje!

Nessa época eu dava aulas de guitarra no meu estúdio, e alguns alunos com família no exterior começaram a me trazer algumas ferramentas importadas específicas para luteria, as quais foram tornando o trabalho de ajustes mais funcionais. Logo eu já estava fazendo ajustes e regulagens para alunos. Aí começaram a aparecer outras pessoas por indicação, e eu acabei montando uma pequena oficina no meu estúdio.  

Como o foco das minhas regulagens e customizações era a funcionalidade do instrumento, maciez, ação baixa de cordas e performance, em pouco tempo fui adquirindo muitos clientes. Desta forma, em 1989, abri oficialmente minha oficina, trabalhando concomitantemente com a música.

Com o passar do tempo foram surgindo importadores de instrumentos, os quais me contratarão para ajustar seus instrumentos antes de coloca-los no mercado. Depois de algum tempo já havia regulado mais de mil instrumentos. Tive a sorte de ter passado por essas experiências, elas me ajudaram muito em minha carreira.

Nessa época fui assistência autorizada da Ibanez (muito antes da Equipo), da Phil Guitars, Washburn do Brasil, Yamaha do Brasil, entre outras. A partir daí fui obtendo novos cursos, conhecimentos, prática e experiência. Logo após, acabei deixando de lado as minhas outras atividades e me dediquei só a luteria.

ELG Tele Custom

Quais foram as maiores dificuldades que você enfrentou ao longo da carreira?

Edmar Luighi: A maior dificuldade enfrentada pelos luthiers no Brasil sempre foi a falta de ferramentas específicas para o trabalho e acessórios de reposição. Hoje em dia, já encontramos alguns fabricantes produzindo ferramental específico aqui no Brasil e outros trazidos por importadores, assim como acessórios de reposição, mas na época em que comecei, tinha que se virar.

Outro grande problema era (e ainda são, os músicos). Uma grande parte deles procuram um luthier para reparo, ajuste ou customização, mas não sabem exatamente o que querem, ou  não possuem condição para operar o instrumento como desejam que ele atue. Assim sendo, às vezes culpam o luthier pela sua frustração. Não faz parte da cultura do Brasil estudar a funcionalidade do instrumento em sua concepção técnica de atuação em detrimento ao conhecimento ou limitações técnicas do músico em questão. As faculdades de música formam bacharéis, maestros etc., mas muitas vezes eles não sabem trocar corda de uma guitarra com Floyd Rose, ou as limitações que alguns acessórios causam ao instrumento, e aí culpam, como disse acima, o luthier, o modelo ou a marca do instrumento pelo desgosto apresentado. O mesmo ocorre quando pedem a um luthier para fazer um “setup” completo em um instrumento, às vezes de primeira linha, pedindo uma performance excepcional, mas, não tem conhecimento para entender que sua técnica pessoal também tem que ser excepcional para que a “simbiose” entre uma guitarra e o músico seja operante. Aliás, essa foi uma das razões que me levaram a fazer workshops e cursos a esse respeito.


E a maior realização profissional?

Edmar Luighi: A maior realização que tive em minha trajetória foi ser chamado para escrever matérias sobre luteria para várias revistas e sites especializados no assunto, o que me rendeu a honra de escrever três livros (talvez pioneiros no Brasil) sobre manutenção e conhecimentos básicos em instrumentos. São eles: “GUIA ILUSTRADO DA GUITARRA – Manual de conhecimentos e reparos essenciais. “GUIA ILUSTRADO DO BAIXO” Manual de conhecimentos e reparos essenciais – “GUIA ILUSTRADO DA GUITARRA II”- Tudo sobre captadores, lançados à partir do ano de 2003. 

Livros lançados pelo Edmar Luighi


Outra grande realização foi ter conhecido o guitarrista Wander Taffo. Na época ele havia montado o IG&T, na Av. Indianópolis, e estava precisando de um luthier para a escola. Eu fui indicado. Ficamos amigos, e ele me pediu que fizesse uma guitarra na sua “vibe”. Após ter ficado pronta, levei a guitarra ao IG&T para o Wander testá-la, e nesse momento, lá estava também um empresário da Phil Guitar’s (empresa Coreana) que curtiu demais a guitarra, e em consequência disso, propôs fazermos uma “Phil Signature Wander Taffo, by Edmar Luighi”  e distribuí-la no Brasil e em alguns outros países latinos. Talvez ela tenha sido a primeira guitarra feita por um luthier brasileiro para um músico brasileiro e distribuída no mercado interno e externo.

Depois de algum tempo, com o sucesso do IG&T, o Wander resolveu montar o EM&T (Escola de Música e Tecnologia). Fui com ele pra lá e montei a Luteria E.Luighi e uma loja de instrumentos musicais e acessórios chamada “Blue Music”. Depois de algum tempo, vendi a loja para poder administrar melhor as duas luterias que possuía.

Foi através do Wander e do meu trabalho no EM&T que pude conhecer músicos internacionais e seus instrumentos, como Steve Morse, Paul Gilbert, Yngwie Malmsteen, Billy Sheehan, entre outros, e aprimorar meus conhecimentos em relação a instrumentos com implementos de luthiers estrangeiros. Para mim foram grandes conquistas!

ELG Wander Taffo Model

Quais são os principais diferenciais das guitarras E. Luighi Guitars?

Edmar Luighi: Uma pessoa não se torna um luthier como primeira opção de profissão ou de aptidão ou de um de talento inato. Ela migra de alguma outra plataforma de trabalho inerente a luteria, ainda que de uma forma discreta, ou ainda despretensiosa, mas com certeza relativa ou alusiva. Por exemplo, um marceneiro talentoso, que se deslumbra com a fabricação de um instrumento, pois “arranha” um violão ou uma guitarra, e enxerga uma forma de ampliar seu orçamento. Outro exemplo, um músico insatisfeito com os instrumentos que tem a disposição, ou um brilhante instrumentista que vê nas suas guitarras uma falta de completude para as técnicas que gostaria de desempenhar. Nesse caso a lista de “fuçadores” é grande (Eddie Van Halen, Steve Morse, Jimmy Page, Brian May, Ritchie Blackmore e por aí vai).

Ou seja, o luthier parte dessa prerrogativa. Dependendo de onde ele partiu, será o resultado dos seus trabalhos, do seu estilo, da sua proposta, da área do seu métier.
Embora eu já conhecesse madeira e ferramentas por conta de um pai marceneiro, o que eu desejava era um instrumento que funcionasse bem, com ação baixa de cordas, com sustentação de notas, com conforto, ergonomia, definição, afinação etc.

Depois de alguns anos como luthier reparador e customizador, construí a minha primeira guitarra. Ela era tão fina e tão ergonômica que em um ano e meio o corpo se quebrou com uma batida. Contudo, a performance dela era fantástica. Na época, eu já havia colocado raio composto na escala (abaulamento da escala com duas curvaturas, uma para as primas e outra para os bordões), conseguia dar bends de dois tons, e ainda tinha um ótimo conforto para acordes. Possuía chaveamento para captadores, as costas do braço com espessuras diferentes do começo ao o fim para facilitar a execução das músicas, não possuía chapa de tróculo para não engrossar o fim da escala (os parafusos possuíam ilhós embutidos na madeira) e cutways extremamente profundos para se chegar com mais facilidade ao fim da escala. A guitarra era horrível de aparência!

Os músicos que tocavam na época achavam a guitarra maravilhosa, mas também achavam um “Frankenstein”, mas na época eu não estava muito preocupado com a aparência, e sim com o desempenho. Com o passar dos anos fui me aprimorando na questão estética, de maneira a unir funcionalidade, ergonomia e boa aparência. 

Hoje a minha preocupação com os modelos que desenvolvo e assino é que eles funcionem bem, sejam versáteis, que possuam equilíbrio de peso e uso no ombro do músico, acesso ergonômico em toda área de emprego de escalas e acordes e com timbres consistentes interpretados pelos captadores, e não fabricados por eles.

Adapto toda a estética em função do desempenho proposto, e não ao contrário. Daí surge, por exemplo, a minha preferência por acabamentos naturais e foscos, pois permite que quando o músico está suado no palco ou em outra situação, não se sinta preso pela aderência de um verniz brilhante.

Claro que muitas vezes fabrico o instrumento de acordo com o pedido do músico em questão, mas quando o desenvolvimento do projeto é só meu, primo pela funcionalidade e desempenho.

Quando o luthier migra de uma marcenaria, por exemplo, geralmente a construção é bastante primorosa e detalhista, mas nem sempre funcional, ou de excepcional usabilidade. Contudo, o sucesso da obra em quaisquer casos vai da expectativa, da necessidade, e do gosto do instrumentista.

ELG Integral Model

O mercado de luteria está inundado por réplicas exatas de modelos de guitarras de marcas consagradas. Ao contrário disso, você é um profissional que sempre apresenta algum detalhe diferenciado com relação ao design dos instrumentos que você fabrica, mesmo quando baseados em modelos clássicos. É difícil inovar nesse quesito do design? O músico brasileiro curte as inovações ou é mais conservador nesse sentido? 

Edmar Luighi: Nesses anos como luthier e músico, constatei que além da necessidade do instrumentista com relação ao modelo do instrumento que necessita para seu estilo e técnica, a identidade intelectual do instrumento para com o músico é essencial para que a simbiose entre eles ocorra, e a veia artística e inspiracional do instrumentista possa fluir plena. Desta forma, qualquer modificação feita em um modelo já existente, que não condiz com sua proposta inicial de identidade, em minha opinião, além de desagregar valor ao instrumento, pode interferir no padrão de aliança ou concordância do músico com o instrumento. Por isso, procuro criteriosamente, ainda que por motivos funcionais, modificar os detalhes sem causar danos à proposta visual do instrumento. Eu acredito que respeitando esses critérios, até o músico mais conservador pode aceitar mudanças no visual do instrumento em prol de uma melhora na funcionalidade, na ergonomia e na versatilidade do instrumento.

ELG Natural Cherry Les Paul

Quais dicas você poderia oferecer para quem está dando os primeiros passos na luteria?

Edmar Luighi: Eu enxergo o luthier como uma interface entre o músico e o instrumento. O luthier é o cara que traduz e transforma a necessidade e o desejo do instrumentista em ação e operação em uma guitarra, contrabaixo ou violão, com o fim de fazê-los atenderem as expectativas do seu usuário.

Para tanto, além de conhecer os detalhes dos procedimentos mecânicos do processo para execução do trabalho, ele precisa compreender as necessidades técnicas do músico para traduzir sua expectativa em realidade.

Sendo assim, entendo que o luthier tenha que tocar o instrumento e conhecer algumas técnicas para que possa traduzir a carência do músico e reparar a deficiência do equipamento em questão. Então, sugiro que o luthier seja um profundo conhecedor de música. Pelo menos no estilo em que queira atuar mais veementemente. Pois do contrário, não conseguirá, ao menos facilmente, reparar a falha identificada pelo músico em seu instrumento.

Se um músico chega se lamentando que o instrumento não tem a devida sustentação que ele necessita ou espera, é necessário que o luthier questione o que ele toca ou de quem ele é “discípulo” para saber se o instrumento apresenta essa possibilidade, se fora construído para esse intuito, ou se ao invés de uma simples regulagem, o instrumento necessita de alguma modificação ou até de uma troca. Exemplo: o músico chega se queixando de falta de sustentação, peso, e ataque em uma guitarra strato tradicional, e sua esperança é conseguir o timbre do Zakk Wylde no Black label society. O luthier deverá alertá-lo da diferença de proposta do instrumento em questão ao utilizado pelo guitarrista citado, pois, do contrário, irá fazer modificações em cima de modificações e o máximo que conseguirá será travestir a strato e  fabricar um timbre artificial, plástico e inconsistente. Mas para isso, ele precisa conhecer o Zakk Wylde ou estudar a respeito dele, e também ao menos conhecer algumas técnicas que ele utiliza em sua obra.

Por isso, minha sugestão é que o luthier ouça muita música (bandas e instrumentistas variados) e estude os instrumentos que deseja se relacionar como técnico, para que não seja confundido como um marceneiro reparador, ou apenas um consertador de avarias. Um luthier é muito mais que isso. Ele sugestiona, compartilha suas experiências, estuda caso a caso, certifica-se da viabilidade do processo, experimenta, cria, customiza, improvisa, e principalmente, faz uma parceria de forma honesta com o músico na confiança de atingirem o objetivo.

Lembro-me que há muitos anos comecei a tratar das guitarras do Marcinho Eiras, um guitarrista brilhante, que na época despontava com sua técnica “two hands”, semelhante ao guitarrista americano Stanley Jordan. Para regular suas guitarras e alinhá-las para sua técnica, tive que pedir ao Marcinho me ensinar alguma coisa do seu estilo para que eu praticasse e assim conseguisse identificar as necessidades que tal estilo exigia do instrumento.

Só existe luthier honesto ou luthier falido. Não há meio termo. É um ramo que tem que haver confiança. Seja claro! Diga ao cliente o que sabe e o que não sabe fazer.

Não acho que exista luthiers profissionais ruins. Acho que existem aqueles que não compreenderam aquilo que alguns dos seus clientes esperavam, ou clientes que não sabiam o que queriam ou não souberam explicar. Ou até não houve uma empatia entre eles. Comunicação nesse ramo é tudo!

Estudem ao menos física básica, marcenaria básica, eletrônica básica, magnetismo básico, e tudo mais que acharem relevante ao foco que desejam atuar.

Não é necessário ser um luthier que faça tudo, que construa, repare, customize, conserte e pinte. Escolha apenas algo que queira ou saiba fazer e faça direito. Com o tempo irá aumentando seu leque de serviços.

ELG-8 Model Strat

Alguma novidade programada para a reta final de 2019?

Edmar Luighi: Tenho alguns projetos ainda para esse ano, mas ficarei feliz se conseguir concluir dois deles.

Um é o meu novo site/blog/loja, no qual quero disponibilizar uma boa parte dos artigos que fiz para as revistas “Total Guitar”, “Cover Guitarra”, “Guitar Player” e algumas outras revistas eletrônicas e blogs, para facilitar aos meus clientes a compreensão de procedimentos, customizações e utilização de acessórios de forma mais fácil e ilustrada para facilitar nosso diálogo.

Quero fazer novos vídeos pequenos e simples em forma de tutorial, mostrando procedimentos em instrumentos e seus benefícios, customizações, dentre outros. Novamente, o intuito é facilitar minha comunicação e a compreensão dos clientes com relação aos serviços que ofereço e mostrar que não existem verdades absolutas na luteria e na música. Ambas são artes inspiracionais cíclicas, caminham juntas e não estão presas a limites e regras.

Muitas inovações acontecem a partir do surgimento ou aprimoramento de técnicas elaboradas por músicos brilhantes, que levam o luthier a desenvolver novos modelos ou a adaptar instrumentos existentes de acordo com essas inovações. Outras vezes, é o luthier que dá o pontapé e desenvolve um novo modelo que leva o músico a atingir novos patamares. É importante entender que um não vive sem o outro – o músico precisa do luthier e o luthier precisa do músico. São dois lados da mesma moeda. Um é palco, o outro bastidor. Um é oferta, o outro procura. Amanhã o que era oferta estará à procura. Assim como quando um cresce o outro é forçado a crescer. É uma aliança que caminha desta forma há muitos anos.

Enfim, essas são as minhas dicas e considerações para os ingressantes na profissão. Boa sorte a todos!


CONTATOS EDMAR LUIGHI LUTHIERS





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